Confirmação de ausência na visita prévia e festa para convidados
Entrevista imaginária de Rosalinda Fumarola, crítica de arte, curadora e gastrônoma ítalo-brasileira igualmente imaginária, ao jornal Valor Elevado, também inventado por mim. Em sua passagem por São Paulo, Fumarola, que habita em Milão, aceitou discorrer sobre a 32a Bienal de São Paulo, mesmo sem ter visto a exposição que acontece de 7 de setembro a 11 de dezembro de 2016 no Pavilhão Ciccillo Matarazzo.
Valor Elevado – A senhora foi à coletiva de imprensa da 32a Bienal de São Paulo no ano passado, quando veio de Milão?
Rosalinda Fumarola – Não fui. Quando soube do tema pressenti que, mais uma vez, o discurso crítico iria se sobrepor às intenções e à produção real dos artistas. Para não ficar irritada, resolvi ir à Pinacoteca, “Pina” para os íntimos. Depois tomei café com pão de queijo. E depois fui ao Masp reviver a “montagem Lina Bo Bardi” da minha juventude e lembrar do professor quando ficava vermelho. Foi um programa delicioso!
V.E. – O professor Bardi? Vermelho?
R.F. – Sim. Eu sempre lembro dele vermelho. A primeira vez foi quando engoliu uma almôndega quente demais em um almoço na casa de uma escultora. A segunda foi no dia em que estava furioso com a crítica de arte do Estadão, que ele chamava de “aquela loira”. Ela, “aquela loira” que ia visitar a Documenta de Kassel no final dos anos 70 quando ninguém em São Paulo sabia o que era – e adorava citar Harald Szeemann e Pontus Hultén – tinha escrito que o Masp “não possuía ponto de vista”, que as exposições eram um “bricabraque sem leitura crítica”.
V.E. – Que coragem… E o professor?
R.F. – No dia em que estava vermelho no Masp, ele tinha acabado de escrever uma carta desaforada que o jornal A Prancha publicou. Você sabe, aquele jornal bastante híbrido e que é até hoje, o repositório de todas as cartas desaforadas que a “crème de la crème” paulista produziu. Mas “aquela loira” nem respondeu, o que deixou o professor um pouco frustrado e até mesmo lívido. Depois disso, só o vi vermelho quando foi assaltado na frente do museu, coitado. Mas a dona Lina deve ter visto ele vermelho muito mais vezes do que eu.
V.E. – Cof, Cof (tosse). Voltemos à 32a Bienal de São Paulo, ok? De fato, o curador disse que a exposição se propõe a “traçar” muitas coisas…
R.F. – Quem “traça” são os artistas e a arte deles. O problema é que geralmente existe um lapso muito grande entre a ideia e a realidade. É muito raro quando a arte do momento em que a Bienal se realiza, torna-se a MEDIDA ABSOLUTA da atuação curatorial. Não é boa coisa induzir os artistas a criar ou discursar o que queremos que eles criem ou discursem…
V.E. – Com efeito! Parece que 70% do que está lá foi feito especialmente segundo esse “desejo”.
R.F. – E 30% deve ser histórico e/ou foi pescado por toda parte, de forma a apoiar o discurso do curador.
V.E. – Mas ele é muito esforçado! A senhora leu a introdução dele? Fala em teoria da Informação, entropia, termodinâmica, equilíbrio, desordem, perda de informação, incapacidade da energia de um sistema, comportamentos radicais produtivos e imprevisíveis, princípio de incerteza, física quântica, matemática, astronomia, linguística, ciência da comunicação, biologia, sociologia, antropologia, história, educação, mundo globalizado, taxas de extinção na história geológica e biológica da Terra, espécie humana, destino da biosfera, sexta extinção, antropoceno, ecossistemas terrestres, caos temporal, partículas quânticas, medos, sistema Terra, ação imediata, consciência coletiva, pensamento cosmológico, ambiente e inteligência coletiva, ecologias sistêmicas e naturais, incerteza e narrativas, incerteza e cosmologia, incerteza e ecologia, incerteza e educação…
R.F. – Li o esforço. Tudo… menos arte. Os franceses tem uma expressão muito boa quando uma coisa é assim pouco natural, forçada, complicada, pouco lógica, exagerada e alambicada. Eles dizem “tiré par les cheveux” (“puxado pelos cabelos”). É isso.
V.E. – E cita tanta gente, alguns indefectíveis e onipresentes! O físico alemão Werner Heisenberg, Claude E. Shannon, Warren Weaver, Sanford Kwinter, Elizabeth Kolbert, Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro, Déborah Danowski, Jonathan Rosenhead, Zygmunt Bauman, Richard Buckminster Fuller, Franco Berardi…
R.F. – Heisenberg a gente aprende no ginásio. Mas falta Einstein (risos). Não falta Bauman, claro. Aiaiai, quem aguenta ainda ouvir falar em modernidade líquida? E Franco Berardi me chamou atenção. No livro After the Future, ele diz (no sentido dele) que “a arte jamais é simbólica, mas sempre concreta”. Uma tragédia. Nem os que declararam a morte da arte nos anos 70 foram tão funestos! E o atual curador, esforçado e deslumbrado com tanta teoria, algumas passageiras – de pura moda – será que ele sabe que ninguém, olhando a exposição, vai pensar nisso tudo, jamais? Que diante das imagens, esse palavrório todo sempre fica perdido? Que se a Bienal for ruim e chata e não trouxer POR SI alguma reflexão, nenhum discurso no mundo poderá salvá-la?
“Acho que esta será a primeira ‘Bienal Bo-Bo’ do Brasil”
V.E. – Bem, o título é “Incerteza Viva”, para “refletir sobre as atuais condições de vida em tempos de mudança contínua e sobre as estratégias oferecidas pela arte contemporânea para acolher ou habitar incertezas”.
R.F. – Não diga…
V.E. – Como não digo?
R.F. – Quero dizer, essa ideia me parece mais um lugar comum. Passamos a vida explorando formas de viver com o desconhecido. Toda a arte de todas as épocas da humanidade refletiram e refletem sobre isso, não?
V.E. – Sim, mas o nome “Incerteza Viva”…
R.F. – Que nome feio!!! E redundante. Já ouviu falar em “Incerteza Morta”?
V.E. – Com efeito… Enfim, serão enfatizados trabalhos para uma sociedade diferente e formas alternativas de estar no mundo.
R.F. – Certo. São os “ares do tempo”. Tudo que ouço até agora sobre a bienal me remete ao boboísmo.
V.E. – O que é boboísmo?
R.F. – Essa palavra acabo de inventar. É caráter ou modos de bo-bo. Não vou lhe dar uma aula para explicar o que é bo-bo (burguês-boêmio), sim? Existem livros a respeito. Boboísmo é a maneira de ser e sobretudo de pensar de uma classe, não social, mas cultural. Você encontrará isso em várias maneiras de a curadoria encarar a arte. Até no restaurante da bienal, você encontrará. Acho que esta será a primeira “bienal bo-bo” do Brasil (risos). Isso que está travestido de tudo que pertence ao planeta e que nem mais se parece com arte, continua arte de todo modo e é bem antigo. Cogumelos, moscas, ocas, certas pinturas, esculturas, não importa. Chama-se Arte Utópica. Desde que arte é arte, existem estratégias utópicas. Até Leonardo usava! Hoje é Huyghe ou Koo Jeong A que usam! Víctor Grippo do CAYC de Buenos Aires fazia batatas utópicas há vários decênios sob o olhar utópico do saudoso Jorge Glusberg… (risos) Glusberg, aliás, nunca ficava vermelho.
V.E. – O curador diz que…
R.F. – Olha, não quero mais saber. Essa história de fazer a exegese da incerteza (o que é um pouco ingênuo, diga-se de passagem), está me parecendo uma boa desculpa para fugir do verdadeiro papel das bienais.
V.E. – Qual é este papel?
R.F. – Servir como um barômetro da situação artística do planeta e partir não apenas da reflexão sobre os caminhos artísticos, mas sobretudo da prática mesma de torná-los compreensíveis para o público. Esta é a vocação das bienais.
V.E. – A senhora viu as lista dos artistas convidados?
R.F. – Não vi e não quero ver.
V.E. – Como assim?
R.F. – Não gosto de listas.
V.E. – Os jornalistas e o público adoram listas!
R.F. – Sou uma jornalista e uma curadora que odeia listas. Enquanto público, também detesto listas. Listas de exposições são como as notas de uma partitura que ainda não foram orquestradas pelo maestro. Notas sozinhas não valem nada, assim como nomes de artistas soltos, sem articulação, também não valem nada. Se a Bienal fosse uma competição esportiva, aí talvez eu quisesse conhecer a “seleção” prévia.
V.E. – Há ainda alguma coisa que a senhora gostaria de declarar?
R.F. – Sim. Gostaria de dizer que enquanto tomava o meu café com pão de queijo depois da Pinacoteca, quero dizer “da Pina”, fiquei em silêncio, fiz recolhimento, me concentrei. Lembrei até de Kant. Empreguei todos os meios para acreditar que o universo é uma incerteza. Agora sou eu que lhe pergunto: dá para ter uma incerteza dessas sem que ela se transforme numa certeza?
“Quando soube do tema pressenti que, mais uma vez, o discurso crítico iria se sobrepor às intenções e à produção real dos artistas. Para não ficar irritada, resolvi ir à ‘Pina’ tomar café com pão de queijo.”